Tratado da Pratica Darismetyca: um livro quinhentista português com segredos de ilusionismo
Artigo publicado originalmente em: Magicamente – Revista da Associação Portuguesa de Ilusionismo, novembro de 2021, n.º 31.
O dia 15 de novembro de 1519 é uma data histórica para a ciência em Portugal. Foi esse o dia da publicação por Gaspar Nycolas do seu Tratado da Pratica Darismetyca, o primeiro livro de matemática impresso em Portugal.1,2
Que este tratado é de tremenda importância para a história da ciência nacional, em particular da matemática, é inegável, mas o seu relevo não termina aqui: há nesta obra a explicação de vários efeitos de ilusionismo. Este detalhe, que me parece ter passado largamente despercebido pelos matemáticos e investigadores que se debruçaram a obra, torna o Tratado da Pratica Darismetyca de Gaspar Nycolas no mais antigo livro impresso em Portugal onde são descritos os métodos para a execução de efeitos de ilusionismo. O livro que até aqui se considerava ser o primeiro a abordar este tema em Portugal era o Thesouro de Prudentes de Gaspar Cardoso de Sequeira, publicado em 1612.3
A obra
A primeira edição do Tratado da Pratica Darismetyca de Gaspar Nycolas, como se lê no colofão, saiu da oficina de Germão Galharde, impressor de origem francesa radicado em Portugal, no dia 15 de novembro de 1519. Para além desta edição, são conhecidas numerosas reedições, pelo que se deduz que terá sido uma obra muito apreciada.4 Sabe-se da existência de pelo menos uma dezena de edições até ao século XVIII, sendo a última conhecida de 1716.
Da raríssima primeira edição são conhecidos um exemplar muito mutilado que está na Torre do Tombo e um outro que pertence ao Fundo Antigo da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.5 É composta por fólios numerados até 94 e até xiiii, impressos na frente e verso, com texto em língua portuguesa, em tipografia gótica, com algumas tabelas, diagramas e ilustrações, num total de 242 páginas. No frontispício a vermelho e negro, adornado com um grande brasão de armas, lê-se Tratado da pratica Dariſmetyca // ordenada per Gaſpar nycolas // E empremida Com previ- // legio del Rey Noſſo Senhor. Seguem-se duas páginas de prólogo onde o autor dedica a obra a D. Rodrigo, conde de Tentúgal.
O exemplar da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto foi digitalizado, pelo que está disponível para consulta online.6 Dele fez-se também uma edição fac-similada que em 1963 foi publicada pela Livraria Civilização do Porto. Está também anunciada para breve uma nova edição do livro, a cargo de Jorge Nuno Silva e Pedro Jorge Freitas, pela Fundação Calouste Gulbenkian.7
O foco da obra é sobretudo pedagógico e prático, destinando-se principalmente a divulgar conceitos de aritmética comercial. Note-se que a obra surge em plena época dos descobrimentos, durante o reinado de D. Manuel I, quando a atividade mercantil era fulcral para o país.
Mas para além do ensino das somas, subtrações, multiplicações, divisões, frações, proporções, problemas práticos de impostos, câmbios de moedas, trocas comerciais, geometria, etc., encontramos no livro uma parte importante dedicada à matemática puramente recreativa, isto é, com carácter unicamente lúdico. É inserida nesta longa coleção de quebra-cabeças matemáticos que se encontram alguns efeitos de ilusionismo, claro está, com base matemática.
Antes da publicação do Tratado da Pratica Darismetyca é sabido que haviam já sido publicados na Europa, desde o final do século XV, pelo menos algumas dezenas de manuais dedicados à aritmética. São obras anónimas ou assinados por eruditos ou mercadores, escritas não só em latim como em línguas vernáculas, sobretudo a italiana.
Será difícil saber qual a relevância que cada um dos autores destes manuais poderá ter tido no texto de Nycolas mas, de todos estes, há um que, seguramente, exerceu significativa influência. Trata-se do matemático italiano e frade franciscano Luca Pacioli (c. 1445 – 1517). Sabemo-lo, justamente, porque é Nycolas quem o diz: “[…] ſegundo Frey lucas frade de ſam Franciſco que foy neſta arte grande mestre que copilou & compos huua obra dariſmetica & geometria […] deſta obra ho frade eu delle tyrey muytas deſtas queſtoões que ho meu engenho nom abaſtaria ha fazer obra ſem primeyro ho nom veer muyto bem.” (fol. 54v)
O que torna esta referência particularmente interessante é o facto de Luca Pacioli ocupar um lugar de grande relevo na história do ilusionismo, tendo sido o autor da obra De Viribus Quantitatis onde se descrevem numerosos segredos do ilusionismo.8,9
O autor
Pouco se sabe acerca de Gaspar Nycolas. Pensa-se que terá vivido entre o último quartel do século XV e o segundo do século XVI. Acredita-se que não seria natural de Lisboa, uma vez numa passagem do texto se refere à primeira vez em que “entrey na caſa dayndia deſque eſtou neſta çidade [de Lisboa].” (fol. 47r) Alguns autores sugerem que Nycolas pudesse ser natural de Guimarães, por se referir a esta cidade no prólogo enquanto local de encontro com o conde de Tentúgal numa dada ocasião.
Para além da óbvia ligação à matemática, sabemos que o seu nome se relaciona também com a astronomia náutica. Num texto da época, o nome do autor surge associado a tábuas de declinação utilizadas na navegação astronómica pelo Sol, sendo referido por Valentim Fernandes em 1518 na primeira edição do seu Reportório dos Tempos da seguinte forma: “Segueſe o regimetoda declinaçam do ſol pera per ella ſaber o mareãte em qual parte eſta. ſ. aquem ou dalem da linea equinocial. a qual declinaçam he tirada puntualmete del Zacuto pello honrrado Gaſpar nicolas meſtre ſuſſiciente neſa arte.”
Os efeitos mágicos
O primeiro texto conhecido com a descrição de efeitos mágicos com base matemática é da autoria de Alcuíno de Iorque. Trata-se de um manuscrito em latim intitulado De Arithmeticis Propositionibus e terá sido escrito no século VIII. Nesse texto é explicado um método simples para determinar os pensamentos de alguém que desejemos surpreender. O efeito implica pedir a um espectador que pense num número e que faça uma série de operações matemáticas. Após estes passos, o espectador diz qual é o resultado das contas que fez e o “mágico” é capaz de revelar qual o número em que o espectador pensou.10 Este tipo de efeitos surge posteriormente em vários manuscritos, como o Liber Abaci de 1202 do ilustre matemático italiano Leonardo de Pisa, também conhecido como Fibonacci.
Com o advento da tipografia, da tradição do manuscrito passou-se para o livro impresso. Cerca de quatro décadas após a invenção de Gutenberg surge o primeiro livro impresso, de que tenhamos conhecimento, onde são explicados efeitos de mentalismo com base matemática. Trata-se da obra De Arithmetica de Filippo Calandri, impressa em Florença em 1491.11 A partir daqui começam a surgir em manuais italianos de aritmética comercial este tipo de efeitos, como no Libro Dabaco de Giovanni Antonio e Girolamo Tagliente em 1515 e no Libro de Abbacho de Francesco Lazesio em 1519.
Em Portugal, a publicação no Tratado da Pratica Darismetyca de Gaspar Nycolas, em 1519, de truques de ilusionismo com base matemática surge nos mesmos moldes dos manuais italianos.
Os efeitos mágicos que encontramos no texto de Nycolas são essencialmente efeitos de mentalismo. Trata-se de adivinhações não só utilizando números como também objetos, sejam eles dados, moedas ou anéis. Podemos ler, nas páginas do tratado de Nycolas, a descrição e método dos seguintes:
1. “adivinhar quanto dinheiro um homem toma em sua vontade” (fol. 67r) i. e. adivinhar um número pensado;
2. “dizer por arte, quantas peças são as que [qualquer pessoa que quiseres] merca” (fol. 67v) i. e. adivinhar o número de artigos comprados;
3. “dizer a um homem que bote três dados […] adivinhar quantos pontos lança em cada dado” (fol. 68r) i. e. adivinhar o valor de cada um de três dados lançados;
4. “se três homens tomarem três jóias cada uma de sua maneira (…) [adivinhar quem tem a jóia maior, a jóia meã e a jóia mais pequena]” (fol. 69r) i. e. adivinhar quem tem cada um de três objetos;
5. “se alguns homens tomarem um anel, e quiseres dizer por arte quem o tem [e em que dedo e junta]” (fol. 72v) i. e. adivinhar quem tem o anel na mão, e em que dedo e articulação.
Estes cinco efeitos não são, seguramente, originais de Nycolas. Podemos encontrar cada um deles, com pequenas variações, no manuscrito de Luca Pacioli, De Viribus Quantitatis, escrito por volta do ano de 1500. Como se referiu, o próprio Gaspar Nycolas confessa ter procurado inspiração no trabalho de Pacioli, pelo que o facto de cada um destes efeitos surgir neste manuscrito à partida não é surpreendente. O que não é claro é como esta informação chegou a Nycolas, uma vez que em 1519, aquando da publicação do Tratado da Pratica Darismetyca, o manuscrito De Viribus Quantitatis não havia sido publicado. Portanto, não é certo se, no caso concreto destes cinco efeitos, Nycolas obteve estes conhecimentos diretamente no texto de Pacioli, ou de outras fontes escritas, ou através da tradição oral.
Também nas obras italianas De Arithmetica de Calandri de 1491 e Libro Dabaco dos irmãos Tagliente de 1515, anteriores ao Tratado da Pratica Darismetyca, podemos encontrar a maioria destes efeitos mágicos explicados, com ocasionais diferenças no método.
Quase um século após a publicação do tratado de Gaspar Nycolas é publicado em Coimbra, no ano de 1612, o Thesouro de Prudentes de Gaspar Cardoso de Sequeira. Trata-se de um manual pedagógico onde se explicam pragmaticamente temas relacionados com o calendário das festividades religiosas, a agricultura, a medicina, a astronomia e a aritmética. Na secção da obra que se ocupa da aritmética podemos ler todo um capítulo dedicado a efeitos de ilusionismo (tratado III, livro III). Aqui encontramos efeitos com cartas, onde se incluem efeitos com a utilização do baralho ordenado, bem como de números de mentalismo com base matemática.12 Entre os efeitos mágicos do Thesouro de Prudentes podemos encontrar todos os cinco truques que Nycolas havia explicado 93 anos antes.
É interessante verificar que, embora com a evolução dos tempos se tenham desenvolvido e publicado numerosíssimos efeitos mágicos, os truques que Gaspar Nycolas descreveu (não obstante, como vimos, não tenha sido o primeiro a fazê-lo) tenham continuado a gerar interesse. E esse interesse, mesmo nos dias de hoje, ainda não se dissipou. Basta olharmos para as páginas do notável Greater Magic de John Northern Hilliard, publicado quase meio milénio depois de Nycolas, para encontrarmos quatro variações do truque de “adivinhar quem tem cada um de três objetos”. Mas não é só neste volumoso clássico da literatura mágica que encontramos este e outros dos cinco efeitos que descrevemos. Fazendo uma rápida pesquisa no motor de busca askalexander.com pelo truque “adivinhar o valor de cada um de três dados lançados”, facilmente encontramos dúzias de referências em revistas e livros mágicos, mais ou menos contemporâneos, a este efeito e suas variações.
Para concluir, e para partilhar um pouco do sabor da língua portuguesa da época dos descobrimentos, deixo aqui a descrição do efeito dos três dados, nas palavras do próprio Gaspar Nycolas:
“Se quyſeres dizer ha huũ homem que bote tres dados & lhe quiſeres adevinhar quãtos põtos lãça em cada dado diras que dobre o primeiro dado & depois que for dobrado ajuntarlheas. 5. & depois de lhe teres junto. 5 multiplicaras aſſoma quefezer por. 5. & depois que for multiplicada por. 5. ajuntarlheas. 10. & depois de lhe teres jũtos. 10. ajũtaras os põtos do ſegundo dado quãtos quer q forem & depois multiplicaras por. 10. & depois deſer multiplicado por. 10. ajuntaras os pontos do terçeiro dado & depois deſerem jũtos os poutos do terçeiro dado tyraras ſempre per regra geral. 350. de toda aſſoma & os outros q fycarem ſerão os pontos que elle botar nos dados. ſ. hosçentos quantos quer que forem tantos pontos tem ho primeiro dado & quantas dezenas forem, tantos pontos tem o ſegundo dado, e quantas vnidades forem tantos pontos tem ho terçeiro dado.” (fol. 68r)
- Gonçalo Jorge
Referências bibliográficas
1. de Albuquerque L. O primeiro livro de Aritmética impresso em Portugal. Incluído em: Para a História da Ciência em Portugal. Livros Horizonte, Lisboa, 1973, pp. 104-120.
2. Costa Clain T. Gaspar Nicolas e os 500 anos do Tratado da Pratica D'Arismetica (15 de Novembro de 1519). Revista Brasileira de História da Matemática, 2019, vol. 19, n.º 38, pp. 105-137.
3. Klauf T. Bibliografia Portuguesa de Ilusionismo até ao Século XIX. Ed. de autor, Grijó, 1997.
4. de Albuquerque L. Nota sobre a obra e o seu autor. Incluído em: Tratado da pratica Darismetyca (edição fac-similada). Livraria Civilização, Porto, 1963.
5. Leite de Faria F. Mais um livro Quinhentista de autor Vimaranense – a edição de 1559 do «Tratado da Pratica Darismética». Boletim de Trabalhos Históricos do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, 1988, vol. 39, pp. 1-6.
6. Nycolas G. Tratado da Pratica Darismetyca. 1519. Website do Fundo Antigo da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. https://www.fc.up.pt/fa/index.php?p=nav&f=books.0223.W_0223_000001#faimg. Acedido em 25 de agosto de 2021.
7. Freitas PJ. Tratado de Prática Darismética de Gaspar Nicolás. Gazeta de Matemática, 2020, n.º 190, pp. 23-25.
8. Hirth T. Luca Pacioli and his 1500 book De Viribus Quantitatis. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2015.
9. Bossi V, Mira A, Arlati F. Mate-magica: I giochi di prestigio di Luca Pacioli. Aboca Edizioni, Sansepolcro, 2012.
10. Kalush W. Some overlooked books in English before 1700. Perennial Mystics 2001, n.º 16, pp. 10-15.
11. Kalush W. The first card tricks in print?. Conjuring Arts Research Center website. https://conjuringarts.org/2021/06/the-first-card-tricks-in-print/. Acedido em 25 de agosto de 2021.
12. Klauf T. A Importância do Baralho Ordenado no Ilusionismo. Ed. de autor, Grijó, 1998.
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